Quase duas décadas após o desaparecimento de Madeleine McCann, de três anos, de um apartamento de férias na Praia da Luz, Portugal, uma nova análise do caso revela um erro crítico que pode ter prejudicado a investigação desde os primeiros dias. As autoridades, influenciadas pelo depoimento emocionado dos pais de Madeleine, Kate e Gerry McCann, apoiaram-se fortemente na teoria de que a criança teria sido raptada por um estranho, uma narrativa que comoveu o mundo e alimentou uma caçada humana por toda a Europa. No entanto, um detalhe crucial foi deixado de lado: cães farejadores, trazidos pela polícia britânica para auxiliar nas buscas, detectaram o cheiro de Madeleine no carro alugado da família — um veículo adquirido semanas após seu desaparecimento. Essa pista ignorada, descartada em meio à busca frenética por um sequestrador, levanta questões preocupantes sobre se a investigação desviou-se do curso desde o início, deixando o destino de Madeleine sem solução.

A noite de 3 de maio de 2007 começou como muitas outras durante as férias da família McCann no resort Ocean Club. Madeleine, uma menina loira de olhos castanhos com um coloboma característico no olho direito, estava aconchegada na cama ao lado de seus irmãos gêmeos de dois anos, Sean e Amelie, em seu apartamento térreo. Kate e Gerry, ambos médicos de Rothley, Leicestershire, juntaram-se a amigos em um restaurante de tapas a 55 metros de distância, uma rotina que seguiam na maioria das noites. O grupo, mais tarde apelidado de “Sete Tapas”, revezava-se para verificar como seus filhos dormiam a cada meia hora. Às 21h05, Gerry encontrou as três crianças dormindo, embora tenha notado que a porta do quarto estava mais aberta do que a havia deixado, quase fechando-a antes de retornar para o jantar. Às 22h, a verificação de Kate revelou o pior pesadelo de um pai: a cama de Madeleine estava vazia. Ela correu de volta para o restaurante, gritando: “Madeleine sumiu! Alguém a levou!”

A resposta inicial foi caótica. Sessenta funcionários do resort e hóspedes vasculharam o complexo até o amanhecer, chamando o nome de Madeleine. A Polícia Judiciária (PJ) portuguesa chegou às 22h30, seguida por detetives às 23h10. Patrulhas de fronteira e aeroportos foram alertados, e voluntários lotaram a Praia da Luz para se juntar à busca. O relato dos McCann de um estranho sequestrando Madeleine através de uma porta de pátio destrancada ou janela aberta moldou a investigação inicial. Um avistamento por Jane Tanner, uma amiga do grupo, de um homem carregando uma criança de pijama às 21h10 reforçou essa teoria. A polícia divulgou a descrição de um homem branco, de cerca de 30 anos, com cabelo castanho curto, visto caminhando em direção à praia. A narrativa de um sequestrador predador se consolidou, amplificada por uma tempestade na mídia global e pela campanha incansável dos McCann para manter o rosto de Madeleine — seu sorriso largo e seu olhar característico — sob os olhos do público.
No entanto, à medida que a investigação se desenrolava, surgiram rachaduras nessa narrativa, particularmente com a introdução de dois cães farejadores britânicos em julho de 2007. Keela, um cão forense treinado para detectar sangue humano, e Eddie, um cão de recuperação de vítimas aprimorado (EVRD) especializado em cheiro de cadáver, foram enviados para a Praia da Luz. Esses cães, famosos por sua precisão, foram levados para o apartamento dos McCann (5A), um terreno baldio próximo, a praia e um Renault Scénic prata que a família alugou 24 dias após o desaparecimento de Madeleine. Os resultados foram surpreendentes: ambos os cães alertaram atrás do sofá na sala de estar do apartamento, e Eddie sinalizou perto do guarda-roupa do quarto. Mais crucialmente, Eddie deu um “alerta de latido” — específico para cheiro de cadáver — no porta-malas do Renault Scénic. Keela também detectou vestígios de sangue na mesma área. Essas descobertas sugeriram que o corpo de Madeleine pode ter estado em contato com o carro, um detalhe impossível de conciliar com a cronologia de seu desaparecimento, já que o veículo foi alugado semanas depois.
Apesar do histórico impecável dos cães — Eddie foi treinado para detectar restos mortais humanos mesmo após incineração ou submersão — seus alertas foram minimizados. Investigadores portugueses, pressionados a investigar a hipótese do sequestro, trataram as descobertas como inconclusivas. Os McCann, que se tornaram arguidos (suspeitos formais) em setembro de 2007, rejeitaram as evidências do cão, com sua porta-voz, Justine McGuinness, chamando-a de “ridícula” sugerir que eles estavam envolvidos. Testes forenses em amostras do carro e do apartamento, enviados ao Serviço de Ciência Forense do Reino Unido, encontraram vestígios de DNA, mas nenhuma correspondência definitiva com Madeleine, marginalizando ainda mais os sinais dos cães. Em julho de 2008, os McCann foram inocentados e o caso foi arquivado, com a teoria do sequestro ainda dominante.
Por que essa evidência foi ignorada? A resposta reside em uma confluência de fatores que distorceram a investigação. Primeiro, o peso emocional da história dos McCann — um casal apaixonado devastado pelo sequestro da filha — repercutiu profundamente. Kate e Gerry, articulados e com conhecimento da mídia, lançaram o Fundo Madeleine, arrecadando milhões com o apoio de figuras como J.K. Rowling e Richard Branson. Sua campanha, aliada à intensa cobertura da mídia, consolidou a imagem de uma criança sequestrada, fazendo com que teorias alternativas parecessem insensíveis. A polícia portuguesa, criticada por lidar mal com a cena do crime, falhando em protegê-la ou realizar buscas porta a porta, estava sob escrutínio global. Perseguir os pais como suspeitos arriscou ainda mais reações negativas, especialmente após o clamor público sobre sua “monstruosidade” na imprensa, com críticos como Anne Enright questionando o comportamento estoico de Kate.
Em segundo lugar, as descobertas dos cães conflitavam com o cronograma do sequestro. Se Madeleine foi levada em 3 de maio, como seu cheiro — especialmente o cheiro de cadáver — poderia aparecer em um carro alugado 24 dias depois? Essa anomalia exigia investigação, mas os investigadores não tinham a corroboração forense para mudar de assunto. O foco da PJ permaneceu em suspeitos externos, como Robert Murat, um homem local inocentado após nenhuma evidência o ligar ao crime. Os alertas dos cães, embora convincentes, foram considerados circunstanciais sem um corpo ou DNA conclusivo. As diferenças culturais também desempenharam um papel: a confiança britânica em evidências caninas contrastava com o ceticismo português, já que a PJ priorizava o testemunho humano em detrimento dos sinais dos animais.
Terceiro, a investigação foi prejudicada por erros iniciais. A falha em preservar a cena do crime no apartamento permitiu a contaminação, enfraquecendo as pistas forenses. O avistamento de Tanner, inicialmente crucial, foi posteriormente desmascarado quando um britânico admitiu que provavelmente era a pessoa vista, carregando seu próprio filho. Quando as autoridades alemãs nomearam Christian Brückner como principal suspeito em 2020, a pista havia esfriado. Brückner, um estuprador condenado que morava no Algarve em 2007, negou envolvimento, e buscas recentes em 2023 e 2025 — motivadas por evidências como um disco rígido “perturbador” encontrado sob seu cachorro morto — não produziram nenhuma descoberta. As evidências do cachorro de 2007, no entanto, continuam sendo um incômodo “e se”.
Para os McCann, a dor persiste. Agora na casa dos 50 anos, Kate e Gerry marcam a ausência de Madeleine com declarações anuais, expressando esperança no site findmadeleine.com: “Nunca desistiremos”. Seus gêmeos, agora com 20 anos, carregam o peso de uma irmã que mal conheceram. O público também permanece cativado, com documentários e livros alimentando o debate. No entanto, os sinais dos cães — indicando a presença de Madeleine em um carro que a família usou muito depois de seu desaparecimento — sugerem uma possibilidade mais sombria que os investigadores relutavam em encarar. Poderia Madeleine estar mais perto do que se acreditava, talvez ter se mudado após um incidente inicial? A pressa em encontrar um sequestrador cegou as autoridades para evidências à vista de todos?
Especialistas agora argumentam que os alertas dos cães justificam um exame mais aprofundado. A detecção de odores caninos, confiável em casos como o desaparecimento de Milly Dowler em 2006, pode identificar vestígios invisíveis aos métodos humanos. O alerta de cadáver de Eddie, específico para restos mortais humanos, insinuou que Madeleine já estava morta antes do carro ser alugado, um cenário em desacordo com a narrativa do sequestro. Reabrir essa pista poderia envolver um novo teste no Renault Scénic, embora o tempo e a contaminação possam limitar os resultados. Ferramentas forenses avançadas, como o radar de penetração no solo usado em buscas em 2025 perto da antiga residência de Brückner, poderiam revisitar locais ligados aos movimentos do carro em 2007.
O caso Madeleine McCann, descrito pelo The Daily Telegraph como “o caso de pessoa desaparecida mais noticiado da história moderna”, expõe os perigos da visão de túnel. A teoria do sequestro, embora plausível, ofuscou uma pista que poderia ter redefinido a linha do tempo, o local ou até mesmo os culpados. À medida que a Praia da Luz desaparece das manchetes, moradores como um antigo vizinho de Brückner expressam exaustão, dizendo à BBC News: “Só queremos um desfecho”. Para Kate e Gerry, desfecho significa respostas — se Madeleine foi levada por um estranho, como eles acreditam, ou encontrou um destino mais próximo de casa. Os latidos esquecidos dos cães, ecoando no porta-malas de um carro em 2007, ainda exigem ser ouvidos, um lembrete de que a verdade muitas vezes se esconde onde os investigadores temem procurar.